Below, you will find the lyrics for Los Dos Amantes by Los Dinamicos Del Norte.
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido
Olho e contenta-me ver
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio
Aqui, acolá, acorda a vida marítima
Erguem-se velas, avançam rebocadores
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto
Há uma vaga brisa
Mas a minh'alma está com o que vejo menos
Com o paquete que entra
Porque ele está com a Distância, com a Manhã
Com o sentido marítimo desta Hora
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea
Como um começar a enjoar, mas no espírito
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos
Todo o atracar, todo o largar de navio
É — sinto-o em mim como o meu sangue
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui
Todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha
Quem sabe, quem sabe
Se não parti outrora, antes de mim
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim
Um grande cais cheio de pouca gente
Duma grande cidade meio-desperta
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material
Real, visível como cais, cais realmente
O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado
Insensivelmente evocado
Nós os homens construímos
Os nossos cais de pedra atual sobre água verdadeira
Que depois de construídos se anunciam de repente
Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere
Tudo se revela diverso
O Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto?
Grandes Cais como os outros cais, mas o Único
Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fundo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha
Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria
Que essencialidade de mistério e sentido parados
Em divino êxtase revelador
Às horas cor de silêncios e angústias
Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!
Cais negramente refletido nas águas paradas
Bulício a bordo dos navios
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura
Que quando o navio volta ao porto
Há sempre qualquer alteração a bordo!
Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos refletidos devagar nas águas
Quando o navio larga do porto!
Flutuar como alma da vida, partir como voz
Viver o momento tremulamente sobre águas eternas
Acordar para dias mais diretos que os dias da Europa
Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar
Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atônitas
As praias longínquas, os cais vistos de longe
E depois as praias próximas, os cais vistos de perto
O mistério de cada ida e de cada chegada
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Deste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramaram
Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe
Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar
Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente
Para o navio que se aproxima
A frescura das manhãs em que se chega
E a palidez das manhãs em que se parte
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um medo
O medo ancestral de se afastar e partir
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo
Encolhe-nos a pele e agonia-nos
E todo o nosso corpo angustiado sente
Como se fosse a nossa alma
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira
Uma saudade a qualquer coisa
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento
E só fica um grande vácuo dentro de nós
Uma oca saciedade de minutos marítimos
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor
Se soubesse como sê-lo
A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca
Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva
Na minha imaginação ele está já perto e é visível
Em toda a extensão das linhas das suas vigias
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo
Os navios que entram a barra
Os navios que saem dos portos
Os navios que passam ao longe
Todos estes navios abstratos quase na sua ida
Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa
E não apenas navios, navios indo e vindo
E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar neles
Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas
Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das despensas
Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incômodas
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo
Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira
Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu cismo indeterminadamente as viagens
As linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico
Em que não sei por que sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sobre os nervos o fato de que aquele é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O indico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar para bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos
Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!
E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas
Galdropes, escotilhas, caldeiras, coletores, válvulas
Caí por mim dentro em montão, em monte
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
Sede vós o tesouro da minha avareza febril
Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação
Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética
Fornecei-me metáforas imagens, literatura
Porque em real verdade, a sério, literalmente
Minhas sensações são um barco de quilha pro ar
Minha imaginação uma ancora meio submersa
Minha ânsia um remo partido
E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!
Soa no acaso do rio um apito, só um
Treme já todo o chão do meu psiquismo
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim
Os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro
De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!
A glória de se saber que um homem que andava conosco
Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!
Nós que andamos com ele vamos falar nisso a todos
Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível
Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto
Que apenas o ter-se perdido o barco onde ele ia
E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado água pros pulmões!
Os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!
Vão rareando ai de mim! os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta
O Puro Longe, liberto do peso do Atual
E como aqui tudo me lembra essa vida melhor
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles
Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto
Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo
Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horizonte
São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios
Da época lenta e veleira das navegações perigosas
Da época de madeira e lona das viagens que duravam meses
Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas
Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos
E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das águas
Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma
E a aceleração do volante sacode-me nitidamente
Chamam por mim as águas
Chamam por mim os mares
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu
Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das águas
A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar
Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas
Esse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue
Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz
Esse grito tremendo que parece soar
De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu
E parece narrar todas as sinistras coisas
Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite
(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas
E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da boca
Fazendo porta-voz das grandes mãos curtidas e escuras
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò yyy
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-oò -yyy...)
Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer coisa
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre
Sinto corarem-me as faces
Meus olhos conscientes dilatam-se
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante
Ó clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!
Apelo lançado ao meu sangue
Dum amor passado, não sei onde, que volve
E ainda tem força para me atrair e puxar
Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!
Seja como for, seja por onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!
Todo o meu sangue raiva por asas!
Todo o meu corpo atira-se pra frente!
Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!
Atropelo-me, rujo, precipito-me
Estoiram em espuma as minhas ânsias
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochedos!
Pensando nisto ó raiva! pensando nisto ó fúria!
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias
Subitamente, tremulamente extraorbitadamente
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta
Do volante vivo da minha imaginação
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima
Marinheiros, gajeiros! tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!
Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Manipuladores dos guindastes de carga!
Amainadores de velas, fagueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convés!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de boné de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva
Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que vistes a Patagônia!
Homens que passasses pela Austrália!
Que enchesses o vosso olhar de costas que nunca verei!
Que fostes a terra em terras onde nunca descerei!
Que comprastes artigos toscos em colônias à proa de sertões!
E fizestes tudo isso como se não fosse nada
Como se isso fosse natural
Como se a vida fosse isso
Como nem sequer cumprindo um destino!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens do mar atual! homens do mar passado!
Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto!
Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!
Fenícios! Cartagineses! Portugueses atirados de Sagres
Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendesses escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atônitas
Que trouxesses ouro, miçanga, madeiras cheirosas, setas
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueasses tranqüilas povoações africanas
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prêmios de Novidade de quem, de cabeça baixa
Arremete contra o mistério de novos mares!
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um
A vós todos misturados, entrecruzados
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Eh-eh-eh-eh
Lahô-lahô laHO-lahá-á-á-à-à!
Quero ir convosco, quero ir convosco
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr'onde fostes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente
Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossa
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!
Fugir convosco à civilização!
Perder convosco a noção da moral!
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
Beber convosco em mares do Sul
Novas selvajarias, novas balbúrdias da alma
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!
Ir convosco, despir de mim põe-te daqui pra fora!
O meu traje de civilizado, a minha brandura de ações
Meu medo inato das cadeias
Minha pacífica vida
A minha vida sentada, estática, regrada e revista!
No mar, no mar, no mar, no mar
Pôr no mar, ao vento, às vagas
A minha vida!
Salgar de espuma arremessada pelos ventos
Meu paladar das grandes viagens
Fustigar de água chicoteante as carnes da minha aventura
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis
Meu ser ciclônico e atlântico
Meus nervos postos como enxárcias
Lira nas mãos dos ventos!
Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares
Sobre conveses, ao som de vagas
Que me rasgueis, mateis, fira-os!
O que quero é levar pra Morte
Uma alma a transbordar de Mar
Ébria a cair das coisas marítimas
Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos
Tanto das costas longínquas como do ruído dos ventos
Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios
Como dos tranqüilos comércios
Tanto dos mastros como das vagas
Levar pra Morte com dor, voluptuosamente
Um copo cheio de sanguessugas, a sugar, a sugar
De estranhas verdes absurdas sanguessugas marítimas!
Façam enxárcias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Atranquem-me a pele, preguem-na às quilhas
E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra aos velhos navios!
Calquem aos pés nos conveses meus olhos arrancados!
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
Fustiguem-me atado aos mastros, fustiguem-me!
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sobre as águas arremessadas
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado
Nas vascas bravas das tormentas!
Ter a audácia ao vento dos panos das velas!
Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!
A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos
Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!
Os marinheiros que se sublevaram
Enforcaram o capitão numa verga
Desembarcaram um outro numa ilha deserta
Morooned!
O sol dos trópicos pôs a febre da pirataria antiga
Nas minhas veias intensivas
Os ventos da Patagônia tatuaram a minha imaginação
De imagens trágicas e obscenas
Fogo, fogo, fogo, dentro de mim!
Sangue! sangue! sangue! sangue!
Explode todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!
Estoiram-me com o som de amarras as veias!
E estala em mim, feroz, voraz
A canção do Grande Pirata
A morte berrada do Grande Pirata a cantar
Até meter pavor plas espinhas dos seus homens abaixo
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar
Fifteen men on the Dead Man's Chest
Yo-ho ho and a bottle of rum I
E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw!
Fetch a-a-aft th ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby
Eia,, que vida essa! essa era a vida, eia!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laFIO-Iahá-á-á-à-à!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares
Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sobre amuradas!
Cabeças de crianças, aqui, acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Embrulho-me em tudo isto como uma capa no frio!
Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um toiro louco sobre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sobre isto!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
De repente estala-me sobre os ouvidos
Como um clarim a meu lado
O velho grito, mas agora irado, metálico
Chamando a presa que se avista
A escuna que vai ser tomada
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó yyyy
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó yyyy
O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!
Rujo na fúria da abordagem!
Pirata-mór! César-Pirata!
Pilho, mato, esfacelo, rasgo!
Só sinto o mar, a presa, o saque!
Só sinto em mim bater, baterem-me
As veias das minhas fontes!
Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Piratas, piratas, piratas!
Piratas, amai-me e odiai-me!
Misturai-me convosco, piratas!
Vossa fúria, vossa crueldade corno falam ao sangue
Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive!
Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos conveses
Trincasse velas, remos, cordame e poleame
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes!
E há uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas
Há uma orquestrarão no meu sangue de balbúrdias de crimes
De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares
Furlbundamente, como um vendaval de calor pelo espírito
Nuvem de poeira quente anuviando a minha lucidez
E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!
Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora
Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas
E o terror dos apresados foge pra loucura essa hora
No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, nuvens
Brisa, latitude, longitude, vozearia
Queria eu que fosse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo
Que fosse meu corpo e meu sangue, compusesse meu ser em vermelho
Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!
Ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
Ser quanto foi no lugar dos saques!
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge
E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo!
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles
E sentir tudo isso todas estas coisas duma só vez pela espinha!
Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliqüidade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!
Porque ela teria convosco, mas só em espírito, raivado
Sobre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!
Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica
Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos
Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladores!
E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis
Iria beber nos rugidos do vosso amor todo o vasto
Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias
E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo!
A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo!
Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis
Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós
A minha feminilidade que vos acompanha é ser as vossas almas!
Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!
Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações
Quando tingíeis de sangue os mares altos
Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões
Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das crianças
E leváveis as mães às amuradas para verem o que lhes acontecia!
Estar convosco na carnagem, na pilhagem!
Estar orquestrado convosco na sinfonia dos saques!
Não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!
Não era só ser-vos a fêmea, ser-vos as fêmeas, ser-vos as vítimas
Ser-vos as vítimas homens, mulheres, crianças, navios
Não era só ser a hora e os barcos e as ondas
Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse
Não era só ser concretamente vosso ato abstrato de orgia
Não era só isto que eu queria ser era mais que isto o Deus-isto!
Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário
Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum panteísmo de sangue
Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa
Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade
Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias!
Torturai-me para me curardes!
Minha carne fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam
Antes de caírem sobre as cabeças e os ombros!
Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam!
Minha imaginação o corpo das mulheres que violais!
Minha inteligência o convés onde estais de pé matando!
Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo
O grande organismo de que cada ato de pirataria que se cometeu
Fosse uma célula consciente e todo eu turbilhonasse
Como uma imensa podridão ondeando, e fosse aquilo tudo!
Com tal velocidade desmedida, pavorosa
A máquina de febre das minhas visões transbordantes
Gira agora que a minha consciência, volante
E apenas um nevoento círculo assobiando no ar
Fifteen men on tbe Dead Man's Chest
Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Eh-lahô-lahô-laHO lahá-á-ááá ààà
A selvajaria desta selvajaria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr'àqui engenheiro, pratico à força, sensível a tudo
Pr'àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Arre! por não poder agir de acordo com o meu delírio!
Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilização!
Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas!
Moços de esquina todos nós o somos do humanitarismo moderno!
Estupores de tísicos, de neurastênicos, de linfáticos
Sem coragem para ser gente com violência e audácia
Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
Os piratas! os piratas!
A ânsia do ilegal unido ao feroz
A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis
Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzimos
Os nossos nervos femininos e delicados
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!
Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
Humilhai-me e batei-me!
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa coisa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone
Ó meus senhores! ó meus senhores!
Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!
Desabai sobre mim, como grandes muros pesados
Ó bárbaros do antigo mar!
Rasgai-me e feri-me!
De leste a oeste do meu corpo
Riscai de sangue a minha carne!
Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva
O meu alegre terror carnal de vos pertencer
A minha ânsia masoquista em me dar à vossa fúria
Em ser objeto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade
Dominadores, senhores, imperadores, corcéis!
Torturai-me
Rasgai-me e abri-me!
Desfeito em pedaços conscientes
Entornai-me sobre os conveses
Espalhal-me nos mares, deixai-me
Nas praias ávidas das ilhas!
Cevai sobre mim todo o meu misticismo de vós!
Cinzelai a sangue a minh'alma
Cortai, riscai!
Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!
Esfoladores amados da minha cama submissão!
Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!
Fazei de mim o poço para o vosso desprezo de domínio!
Fazei de mim as vossas vítimas todas!
Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer
Por todas as vossas vítimas às vossas mãos
Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados
Nos assaltos bruscos de amuradas!
Fazei de mim qualquer, cousa como se eu fosse
Arrastado ó prazer, o beijada dor!
Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós
Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no MA-A-A-AR!
Eh-eh-eh-eh-eh! Eh--.h-eh-eh-eh-eh-eh! EH-EH-EHEH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!
Eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eheh-eh-eh-eh-eh'
Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos
Marés, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!
Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Tudo canta a gritar!
FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST
YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!
Eh-eh-eh-eh-eheh-eh! eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á à ààà!
AHÓ-Ó-Ó Ó Ó Ó-Ó Ó Ó Ó Ó yyyj
SCHOONER AHÓ-ó-ó-ó-ó-ó-ó-o-o-o yyyy!
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw!
DA.RBY M'GRAW-AW AW-AW-AW-AW-AW!
FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EFI-EH-EH-EH-EHI
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu
Senti demais para poder continuar a sentir
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim
Decresce sensivelmente a velocidade do volante
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos
Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar noturno
E logo que sinto que há um mar noturno dentro de mim
Sabe dos longes dele, nasce do seu silêncio
Outra vez, outra vez o vasto grito antiquíssimo
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura
Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Úmido e sombrio marulho humano noturno
Voz de sereia longínqua chorando, chamando
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos
E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò yy
Schooner a Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò yy
O orvalho sobre a minha excitação!
O frescor noturno no meu oceano interior!
Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
Cheia de enorme mistério humaníssimo das ondas noturnas
A lua sobe no horizonte
E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção
Que fosse chamar ao meu passado
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter
Era na velha casa sossegada ao pé do rio
(As janelas do meu quarto, e as da casa-de-jantar também
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo
Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo
Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às mesmas janelas
Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar alto
Uma inexplicável ternura
Um remorso comovido e lacrimoso
Por todas aquelas vítimas principalmente as crianças
Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo
Emoção comovida, porque elas foram minhas vítimas
Terna e suave, porque não o foram realmente
Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada
Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida
Como pude eu pensar, sonhar aquelas coisas?
Que longe estou do que fui há uns momentos!
Histeria das sensações ora estas, ora as opostas!
Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe
As cousas de acordo com esta emoção o marulho das águas
O marulho leve das águas do rio de encontro ao cais
A vela passando perto do outro lado do rio
Os montes longínquos, dum azul japonês
As casas de Almada
E o que há de suavidade e de infância na hora matutina!
Uma gaivota que passa
E a minha ternura é maior
Mas todo este tempo não estive a reparar para nada
Tudo isto foi uma impressão só da pele, com uma carícia
Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longínquo
Da minha casa ao pé do rio
Da minha infância ao pé do rio
Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite
E a paz do luar esparso nas águas!
Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu
Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me
Lembro-me e as lágrimas caem sobre o meu coração e lavam-no da vida
E ergue-me uma leve brisa marítima dentro de mim
As vezes ela cantava a 'Nau Catrineta'
Lá vai a Nau Catrineta
Por sobre as águas do mar
E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval
Era a 'Bela Infanta'... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim
E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!
Como fui ingrato para ela e afinal que fiz eu da vida?
Era a 'Bela Infanta'... Eu fechava os olhos, e ela cantava
Estando a Bela Infanta
No seu Jardim assentada
Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar
E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz
Estando a Bela Infanta
No seu jardim assentada
Seu pente de ouro na mão
Seus cabelos penteava
Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!
Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição
E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!
Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha
Pensar isto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter
Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto
Turbilhão lento de sensações desencontradas!
Vertigem tênue de confusas coisas na alma!
Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam
Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos
Lágrimas, lágrimas inúteis
Leves brisas de contradição roçando pela face a alma
Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção
Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo
A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer
Fifteen men on the Dead Man's Chest
Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Mas a canção é uma linha reta mal traçada dentro de mim
Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma
Outra vez, mas através duma imaginação quase literária
A fúria da pirataria, da chacina, o apetite, quase do paladar, do saque
Da chacina inútil de mulheres e de crianças
Da tortura fútil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres
E a sensualidade de escangalhar e partir as coisas mais queridas dos outros
Mas sonho isto tudo com um medo de qualquer coisa a respirar-me sobre a nuca
Lembro-me de que seria interessante
Enforcar os filhos à vista das mães
Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos
Levando os pais em barcos até lá para verem
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho
E está dormindo tranqüilo em casa)
Aguilhôo uma ânsia fria dos crimes marítimos
Duma inquisição sem a desculpa da Fé
Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria
Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal
Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo
Como quem faz paciências a uma mesa de jantar de província com a toalha
Atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar
Só pelo suave gosto de cometer crimes abomináveis e não os achar grande coisa
De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dor mas nunca deixar chegar lá
Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me
Um calafrio arrepia-me
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo
De repente pavor por todas as minhas veias!
Frio repentino da porta para o Mistério
Que se abriu dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar!
Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente
A velha voz do marinheiro inglês Jim Barris com quem eu falava
Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim
Das pequenas coisas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã
Mas estupendamente vinda de além da aparência das coisas
A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Boca
Vinda de sobre e de dentro da solidão noturna dos mares
Chama por mim, chama por mim, chama por mim
Vem surdamente, como se fosse suprimida e se ouvisse
Longinquamente, como se estivesse soando noutro lugar e aqui não se pudesse ouvir
Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um hálito silencioso
De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo
O grito eterno e noturno, o sopro fundo e confuso
Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô yyy..
Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô yyy..
Schooner ah-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ô yy.
Tremo com frio da alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado
Que alegria a de sair dos sonhos de vez!
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes que chegam cedo
Já não me importa o paquete que entrava. Ainda está longe
Só o que está perto agora me lava a alma
A minha imaginação higiênica, forte, pratica
Preocupa-se agora apenas com as coisas modernas e úteis
Com os navios de carga, com os paquetes e os passageiros
Com as fortes coisas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras
Abranda o seu giro dentro de mim o volante
Maravilhosa vida marítima moderna
Toda limpeza, máquinas e saúde!
Tudo tão bem arranjado, tão espontaneamente ajustado
Todas as peças das máquinas, todos os navios pelos mares
Todos os elementos da atividade comercial de exportação e importação
Tão maravilhosamente combinando-se
Que corre tudo como se fosse por leis naturais
Nenhuma coisa esbarrando com outra!
Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas
Com a sua poesia também, e todo o novo gênero de vida
Comercial, mundana, intelectual, sentimental
Que a era das máquinas veio trazer para as almas
As viagens agora são tão belas como eram dantes
E um navio será sempre belo, só porque é um navio
Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve
Em parte nenhuma, graças a Deus!
Os portos cheios de vapores de muitas espécies!
Pequenos, grandes, de várias cores, com várias disposições de vigias
De tão deliciosamente tantas companhias de navegação!
Vapores nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos!
Tão prazenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar
No velho mar sempre o homérico, ó Ulisses!
O olhar humanitário dos faróis na distância da noite
Ou o súbito farol próximo na noite muito escura
('Que perto da terra que estávamos passando!'
E o som da água canta-nos ao ouvido)!
Tudo isto hoje é como sempre foi, mas há o comércio
E o destino comercial dos grandes vapores
Envaidece-me da minha época!
A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros
Dá-me o orgulho moderno de viver numa época onde é tão fácil
Misturarem-se as raças, transporem-se os espaços, ver com facilidade todas as coisas
E gozar a vida realizando um grande número de sonhos
Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em redes de arame amarelo!
Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como gentlemen
São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões
Como gente perfeitamente consciente de como é higiênico respirar o ar do mar
O dia é perfeitamente já de horas de trabalho
Começa tudo a movimentar-se, a regularizar-se
Com um grande prazer natural e direto percorro a alma
Todas as operações comerciais necessárias a um embarque de mercadorias
A minha época é o carimbo que levam todas as faturas
E sinto que todas as cartas de todos os escritórios
Deviam ser endereçadas a mim
Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade
E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna!
Rigor comercial do princípio e do fim das cartas
Dear Sirs Messieurs Amigos e Srs
Yours faithfully ...nos salutations empressées
Tudo isto não é só humano e limpo, mas também belo
E tem ao fim um destino marítimo, um vapor onde embarquem
As mercadorias de que as cartas e as faturas tratam
Complexidade da vida! As faturas são feitas por gente
Que tem amores, ódios, paixões políticas, às vezes crimes
E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso!
Há quem olhe para uma fatura e não sinta isto
Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias
Eu é até às lágrimas que o sinto humanissimamente
Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos escritórios!
Ora, ela entra por todos os poros... Neste ar marítimo respiro-a
Por tudo isto vem a propósito dos vapores, da navegação moderna
Porque as faturas e as cartas comerciais são o princípio da história
E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim
E as viagens, as viagens de recreio, e as outras
As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros
Duma maneira especial, como se um mistério marítimo
Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento
Patriotas transitórios duma mesma pátria incerta
Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das água
Grandes hotéis do Infinito, transatlânticos meus!
Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto
E conterem todas as espécies de trajes, de caras, de raças!
As viagens, os viajantes tantas espécies deles!
Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!
Tanto destino diverso que se pode dar à vida
À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente
A fraternidade afinal não é uma idéia revolucionária
É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo
E passa a achar graça ao que tem que tolerar
E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!
Tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado
Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses
Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!
A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano
Pobre gente! pobre gente toda a gente!
Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio
Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês
Muito sujo, como se fosse um navio francês
Com um ar simpático de proletário dos mares
E sem dúvida anunciado ontem na última página das gazetas
Enternece-me o pobre vapor, tão humilde vai ele e tão natural
Parece ter um certo escrúpulo não sei em quê, ser pessoa honesta
Curnpridora duma qualquer espécie de deveres
Lá vai ele deixando o lugar defronte do cais onde estou
Lá vai ele tranqüilamente, passando por onde as naus estiveram
Outrora, outrora
Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importância
Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida!
Boa viagem! Boa viagem!
Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor
De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos
E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto
Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino
Na tua saída do porto de Lisboa, hoje!
Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso
Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa
Com um ligeiro estremecimento
O volante dentro de mim pára
Passa, lento vapor, passa e não fiques
Passa de mim, passa da minha vista
Vai-te de dentro do meu coração
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro
Luzem os telhados dos edifícios do cais
Todo o lado de cá da cidade brilha
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto
Depois ponto vago no horizonte
Ponto cada vez mais vago no horizonte
Nada depois, e só eu e a minha tristeza
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios
E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira
Traça um semicírculo de não sei que emoção
No silêncio comovido da minh'alma
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