Below, you will find the lyrics for Povo que Lavas no Rio by António Manuel Ribeiro.
1
'depois de procelosa tempestade
Noturna sombra e sibilante vento
Traz a manhã serena claridade
Esperança de porto e salvamento
Aparta o sol a negra escuridade
Removendo o temor do pensamento
Assim no reino forte aconteceu
Depois que o rei fernando faleceu
2
'porque, se muito os nossos desejaram
Quem os danos e ofensas vá vingando
Naqueles que tão bem se aproveitaram
Do descuido remisso de fernando
Depois de pouco tempo o alcançaram
Joane, sempre ilustre, alevantando
Por rei, como de pedro único herdeiro
Verdadeiro
3
'ser isto ordenação dos céus divina
Por sinais muito claros se mostrou
Quando em évora a voz de uma menina
Ante tempo falando o nomeou
E como cousa enfim que o céu destina
No berço o corpo e a voz alevantou
—'portugal! portugal!' alçando a mão
Disse 'pelo rei novo, dom joão.'—
4
'alteradas então do reino as gentes
Co'o ódio, que ocupado os peitos tinha
Absolutas cruezas e evidentes
Faz do povo o furor por onde vinha
Matando vão amigos e parentes
Do adúltero conde e da rainha
Com quem sua incontinência desonesta
Mais manifesta
5
'mas ele enfim, com causa desonrado
Diante dela a ferro frio morre
De outros muitos na morte acompanhado
Que tudo o fogo erguido queima e corre
Quem, como astianás, precipitado
De alta torre
A quem ordens, nem aras, nem respeito
Quem nu por ruas, e em pedaços feito
6
'podem-se pôr em longo esquecimento
As cruezas mortais que roma viu
Feitas do feroz mário e do cruento
Sila, quando o contrário lhe fugiu
Por isso lianor, que o sentimento
Do morto conde ao mundo descobriu
Faz contra lusitânia vir castela
Dizendo ser sua filha herdeira dela
7
'beatriz era a filha, que casada
Co'o castelhano está, que o reino pede
Por filha de fernando reputada
Se a corrompida fama lhe concede
Com esta voz castela alevantada
Dizendo que esta filha ao pai sucede
Suas forças ajunta para as guerras
De várias regiões e várias terras
8
Vem de toda a província que de um brigo
Já teve o nome derivado
Das terras que fernando e que rodrigo
Ganharam do tirano e mauro estado
Não estimam das armas o perigo
Os que cortando vão co'o duro arado
Os campos lioneses, cuja gente
C'os mouros foi nas armas excelente
9
'os vândalos, na antiga valentia
Ainda confiados, se ajuntavam
Da cabeça de toda andaluzia
Que do guadalquibir as águas lavam
A nobre ilha também se apercebia
Que antigamente os tírios habitavam
Trazendo por insígnias verdadeiras
As hercúleas colunas nas bandeiras
10
'também vem lá do reino de toledo
Cidade nobre e antiga, a quem cercando
O tejo em torno vai suave e ledo
Que das serras de conca vem manando
A vós outros também não tolhe o medo
Ó sórdidos galegos, duro bando
Que para resistirdes vos armastes
Aqueles, cujos golpes já provasses
11
'também movem da guerra as negras fúrias
A gente biscainha, que carece
De polidas razões, e que as injúrias
Muito mal dos estranhos compadece
A terra de guipúscua e das astúrias
Que com minas de ferro se enobrece
Armou dele os soberbos moradores
Para ajudar na guerra a seus senhores
12
'joane, a quem do peito o esforço cresce
Como a sansão hebréio da guedelha
Posto que tudo pouco lhe parece
Co'os poucos de seu reino se aparelha
E não porque conselho lhe falece
Co'os principais senhores se aconselha
Mas só por ver das gentes as sentenças
Que sempre houve entre muitos diferenças
13
'não falta com razões quem desconcerte
Da opinião de todos, na vontade
Em quem o esforço antigo se converte
Em desusada e má deslealdade
Podendo o temor mais, gelado, inerte
Que a própria e natural fidelidade
Negam o rei e a pátria, e, se convém
Negarão o deus que têm
14
'mas nunca foi que este erro se sentisse
No forte dom nuno alvares; mas antes
Posto que em seus irmãos tão claro o visse
Reprovando as vontades inconstantes
Aquelas duvidosas gentes disse
Com palavras mais duras que elegantes
A mão na espada, irado, e não facundo
Ameaçando a terra, o mar e o mundo
15
—'como! da gente ilustre portuguesa
Há-de haver quem refuse o pátrio marte?
Como! desta província, que princesa
Foi das gentes na guerra em toda a parte
Há-de sair quem negue ter defesa?
Quem negue a fé, o amor, o esforço e arte
De português, e por nenhum respeito
O próprio reino queira ver sujeito?
16
—'como! não seis vós inda os descendentes
Daqueles, que debaixo da bandeira
Do grande henriques, feros e valentes
Vencestes esta gente tão guerreira?
Quando tantas bandeiras, tantas gentes
Puseram em fugida, de maneira
Que sete ilustres condes lhe trouxeram
Presos, afora a presa que tiveram?
17
—'com quem foram contino sopeados
Estes, de quem o estais agora vós
Por dinis e seu filho, sublimados
Senão co'os vossos fortes pais, e avôs?
Pois se com seus descuidos, ou pecados
Fernando em tal fraqueza assim vos pôs
Torne-vos vossas forças o rei novo
Se é certo que co'o rei se muda o povo
18
—'rei tendes tal, que se o valor tiverdes
Igual ao rei que agora alevantastes
Desbaratareis tudo o que quiserdes
Quanto mais a quem já desbaratasses
E se com isto enfim vos não moverdes
Do penetrante medo que tomastes
Atai as mãos a vosso vão receio
Que eu só resistirei ao jugo alheio
19
—'eu só com meus vassalos, e com esta
Defenderei da força dura e infesta
A terra nunca de outrem sojugada
Em virtude do rei, da pátria mesta
Da lealdade já por vós negada
Vencerei
Mas quantos a meu rei forem contrários.'—
20
Bem como entre os mancebos recolhidos
Em canúsio, relíquias sós de canas
Já para se entregar quase movidos
A fortuna das forças africanas
Cornélio moço os faz que, compelidos
Da sua espada, jurem que as romanas
Armas não deixarão, enquanto a vida
Os não deixar, ou nelas for perdida
21
'destarte a gente força e esforça nuno
Que, com lhe ouvir as últimas razões
Removem o temor frio, importuno
Que gelados lhe tinha os corações
Nos animais cavalgam de neptuno
Brandindo e volteando arremessões
Vão correndo e gritando a boca aberta
—'viva o famoso rei que nos liberta!'—
22
'das gentes populares, uns aprovam
A guerra com que a pátria se sustinha
Uns as armas alimpam e renovam
Que a ferrugem da paz gastadas tinha
Capacetes estofam, peitos provam
Arma-se cada um como convinha
Outros fazem vestidos de mil cores
Com letras e tenções de seus amores
23
'com toda esta lustrosa companhia
Joane forte sai da fresca abrantes
Abrantes, que também da fonte fria
Do tejo logra as águas abundantes
Os primeiros armígeros regia
Quem para reger era os mui possantes
Orientais exércitos, sem conto
Com que passava xerxes o helesponto
24
'dom nuno alvares digo, verdadeiro
Açoute de soberbos castelhanos
Como já o fero huno o foi primeiro
Para franceses, para italianos
Outro também famoso cavaleiro
Que a ala direita tem dos lusitanos
Apto para mandá-los, e regê-los
Mem rodrigues se diz de vasconcelos
25
De da outra ala, que a esta corresponde
Antão vasques de almada é capitão
Que depois foi de abranches nobre conde
Das gentes vai regendo a sestra mão
Logo na retaguarda não se esconde
Das quinas e castelos o pendão
Com joane, rei forte em toda parte
Que escurecendo o preço vai de alarte
26
'estavam pelos muros, temerosas
E de um alegre medo quase frias
Rezando as mães, irmãs, damas e esposas
Prometendo jejuns e romarias
Já chegam as esquadras belicosas
Defronte das amigas companhias
Que com grita grandíssima os recebem
E todas grande dúvida concebem
27
'respondem as trombetas mensageiras
Pífaros sibilantes e atambores
Alférezes volteam as bandeiras
Que variadas são de muitas cores
Era no seco tempo, que nas eiras
Ceres o fruto deixa aos lavradores
Entra em astreia o sol, no mês de agosto
Baco das uvas tira o doce mosto
28
'deu sinal a trombeta castelhana
Horrendo, fero, ingente e temeroso
Ouviu-o o monte artabro, e guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso
Ouviu-o o douro e a terra transtagana
Correu ao mar o tejo duvidoso
E as mães, que o som terríbil escutaram
Aos peitos os filhinhos apertaram
29
'quantos rostos ali se vêem sem cor
Que ao coração acode o sangue amigo!
Que, nos perigos grandes, o temor
É maior muitas vezes que o perigo
E se o não é, parece-o; que o furor
De ofender ou vencer o duro amigo
Faz não sentir que é perda grande e rara
Dos membros corporais, da vida cara
30
'começa-se a travar a incerta guerra
De ambas partes se move a primeira ala
Uns leva a defensão da própria terra
Outros as esperanças de ganhá-la
Logo o grande pereira, em quem se encerra
Todo o valor, primeiro se assinala
Derriba, e encontra, e a terra enfim semeia
Dos que a tanto desejam, sendo alheia
31
'já pelo espesso ar os estridentes
Farpões, setas e vários tiros voam
Debaixo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam
Espedaçam-se as lanças; e as frequentes
Quedas coas duras armas, tudo atroam
Recrescem os amigos sobre a pouca
Gente do fero nuno, que os apouca
32
'eis ali seus irmãos contra ele vão
Mas não se espanta
Que menos é querer matar o irmão
Quem contra o rei e a pátria se alevanta
Destes arrenegados muitos são
No primeiro esquadrão, que se adianta
Contra irmãos e parentes
Quais nas guerras civis de júlio e magno
33
'ó tu, sertório, ó nobre coriolano
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias, com profano
Coração, vos fizestes inimigos
Se lá no reino escuro de sumano
Receberdes gravíssimos castigos
Dizei-lhe que também dos portugueses
Alguns tredores houve algumas vezes
34
'rompem-se aqui dos nossos os primeiros
Tantos dos inimigos a eles vão!
Está ali nuno, qual pelos outeiros
De ceita está o fortíssimo leão
Que cercado se vê dos cavaleiros
Que os campos vão correr de tetuão
Perseguem-no com as lanças, e ele iroso
Torvado um pouco está, mas não medroso
35
'com torva vista os vê, mas a natura
Ferina e a ira não lhe compadecem
Que as costas dê, mas antes na espessura
Das lanças se arremessa, que recrescem
Tal está o cavaleiro, que a verdura
Tinge co'o sangue alheio; ali perecem
Alguns dos seus, que o ânimo valente
Perde a virtude contra tanta gente
36
'sentiu joane a afronta que passava
Nuno, que, como sábio capitão
Tudo corria e via, e a todos dava
Com presença e palavras, coração
Qual parida leoa, fera e brava
Que os filhos que no ninho sós estão
Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara
O pastor de massília lhos furtara
37
'corre raivosa, e freme, e com bramidos
Os montes sete irmãos atroa e abala
Tal joane, com outros escolhidos
Dos seus, correndo acode à primeira ala
-'ó fortes companheiros, ó subidos
Cavaleiros, a quem nenhum se iguala
Defendei vossas terras, que a esperança
Da liberdade está na vossa lança
38
-'vedes-me aqui, rei vosso, e companheiro
Que entre as lanças, e setas, e os arneses
Dos inimigos corro e vou primeiro
Pelejai, verdadeiros portugueses!'—
Isto disse o magnânimo guerreiro
E, sopesando a lança quatro vezes
Com força tira; e, deste único tiro
Muitos lançaram o último suspiro
39
'porque eis os seus acesos novamente
Duma nobre vergonha e honroso fogo
Sobre qual mais com ânimo valente
Perigos vencerá do márcio jogo
Porfiam: tinge o ferro o sangue ardente
Rompem malhas primeiro, e peitos logo
Assim recebem junto e dão feridas
Como a quem já não dói perder as vidas
40
'a muitos mandam ver o estígio lago
Em cujo corpo a morte e o ferro entrava
O mestre morre ali de santiago
Que fortíssimamente pelejava
Morre também, fazendo grande estrago
Outro mestre cruel de calatrava
Os pereiras também arrenegados
Morrem, arrenegando o céu e os fados
41
'muitos também do vulgo vil sem nome
Vão, e também dos nobres, ao profundo
Onde o trifauce cão perpétua fome
Tem das almas que passam deste mundo
E porque mais aqui se amanse e dome
A soberba do amigo furibundo
A sublime bandeira castelhana
Foi derribada aos pés da lusitana
42
'aqui a fera batalha se encruece
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas
A multidão da gente que perece
Tem as flores da própria cor mudadas
Já as costas dão e as vidas; já falece
O furor e sobejam as lançadas
Já de castela o rei desbaratado
Se vê, e de seu propósito mudado
43
'o campo vai deixando ao vencedor
Contente de lhe não deixar a vida
Seguem-no os que ficaram, e o temor
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida
Encobrem no profundo peito a dor
Da morte, da fazenda despendida
Da mágoa, da desonra, e triste nojo
De ver outrem triunfar de seu despojo
44
'alguns vão maldizendo e blasfemando
Do primeiro que guerra fez no mundo
Outros a sede dura vão culpando
Do peito cobiçoso e sitibundo
Que, por tomar o alheio, o miserando
Povo aventura às penas do profundo
Deixando tantas mães, tantas esposas
Sem filhos, sem maridos, desditosas
45
'o vencedor joane esteve os dias
Costumados no campo, em grande glória
Com ofertas depois, e romarias
As graças deu a quem lhe deu vitória
Mas nuno, que não quer por outras vias
Entre as gentes deixar de si memória
Senão por armas sempre soberanas
Para as terras se passa transtaganas
46
'ajuda-o seu destino de maneira
Que fez igual o efeito ao pensamento
Porque a terra dos vândalos fronteira
Lhe concede o despojo e o vencimento
Já de sevilha a bética bandeira
E de vários senhores num momento
Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa
Obrigados da força portuguesa
47
'destas e outras vitórias longamente
Eram os castelhanos oprimidos
Quando a paz, desejada já da gente
Deram os vencedores aos vencidos
Depois que quis o padre onipotente
Dar os reis inimigos por maridos
As duas ilustríssimas inglesas
Gentis, formosas, ínclitas princesas
48
'não sofre o peito forte, usado à guerra
Não ter amigo já a quem faça dano
E assim não tendo a quem vencer na terra
Vai cometer as ondas do oceano
Este é o primeiro rei que se desterra
Da pátria, por fazer que o africano
Conheça, pelas armas, quanto excede
A lei de cristo à lei de mafamede
49
'eis mil nadantes aves pelo argento
Da furiosa tethys inquieta
Abrindo as pandas asas vão ao vento
Para onde alcides pôs a extrema meta
O monte abila e o nobre fundamento
De ceita toma, e o torpe mahometa
Deita fora, e segura toda espanha
Da juliana, má, e desleal manha
50
'não consentiu a morte tantos anos
Que de herói tão ditoso se lograsse
Portugal, mas os coros soberanos
Do céu supremo quis que povoasse
Mas para defensão dos lusitanos
Deixou, quem o levou quem governasse
E aumentasse a terra mais que dantes
Inclita geração, altos infantes
51
'não foi do rei duarte tão ditoso
O tempo que ficou na suma alteza
Que assim vai alternando o tempo iroso
O bem co'o mal, o gosto coa tristeza
Quem viu sempre um estado deleitoso?
Ou quem viu em fortuna haver firmeza?
Pois inda neste reino e neste rei
Não ousou ela tanto desta lei
52
'viu ser cativo o santo irmão fernando
Que a tão altas empresas aspirava
Que, por salvar o povo miserando
Cercado, ao sarraceno se entregava
Só por amor da pátria está passando
A vida de senhora feita escrava
Por não se dar por ele a forte ceita
Mais o público bem que o seu respeita
53
'codro, porque o inimigo não vencesse
Deixou antes vencer da morte a vida
Régulo, porque a pátria não perdesse
Quis mais a liberdade ver perdida
Este, porque se espanha não temesse
Ao cativeiro eterno se convida
Codro, nem cúrcio, ouvido por espanto
Nem os décios leais fizeram tanto
54
'mas afonso, do reino único herdeiro
Nome em armas ditoso em nossa hespéria
Que a soberba do bárbaro fronteira
Tornou em baixa e humílima miséria
Fora por certo invicto cavaleiro
Se não quisera ir ver a terra ibéria
Mas áfrica dirá ser impossíbil
Poder ninguém vencer o rei terríbil
55
'este pôde colher as maçãs de ouro
Que somente o tiríntio colher pôde
Do jugo que lhe pôs, o bravo mouro
A cerviz inda agora não sacode
Na fronte a palma leva e o verde louro
Das vitórias do bárbaro, que acode
A defender alcácer, forte vila
Tângere populoso e a dura arzila
56
'porém elas enfim por força entradas
Os muros abaixaram de diamante
As portuguesas forças, costumadas
A derribarem quanto acham diante
Maravilhas em armas estremadas
E de escritura dinas elegante
Fizeram cavaleiros nesta empresa
Mais afinando a fama portuguesa
57
'porém depois, tocado de ambição
E glória de mandar, amara e bela
Vai cometer fernando de aragão
Sobre o potente reino de castela
Ajunta-se a inimiga multidão
Das soberbas e várias gentes dela
Desde cádis ao alto pireneu
Que tudo ao rei fernando obedeceu
58
'não quis ficar nos reinos ocioso
O mancebo joane, e logo ordena
De ir ajudar o pai ambicioso
Que então lhe foi ajuda não pequena
Saiu-se enfim do trance perigoso
Com fronte não torvada, mas serena
Desbaratado o pai sanguinolento
Mas ficou duvidoso o vencimento
59
'porque o filho sublime e soberano
Gentil, forte, animoso cavaleiro
Nos contrários fazendo imenso dano
Todo um dia ficou no campo inteiro
Desta arte foi vencido octaviano
E antónio vencedor, sem companheiro
Quando daqueles que césar mataram
Nos filípicos campos se vingaram
60
'porém depois que a escura noite eterna
Afonso aposentou no céu sereno
O príncipe, que o reino então governa
Foi joane segundo e rei trezeno
Este, por haver fama sempiterna
Mais do que tentar pode homem terreno
Tentou, que foi buscar da roxa aurora
Os términos, que eu vou buscando agora
61
'manda seus mensageiros, que passaram
Espanha, frança, itália celebrada
E lá no ilustre porto se embarcaram
Onde já foi parténope enterra
Nápoles, onde os xados se mostraram
Fazendo-a a várias gentes subjugada
Pola ilustrar no fim de tantos anos
Co'o senhorio de ínclitos hispanos
62
'pelo mar alto sículo navegam
Vão-se às praias de rodes arenosas
E dali às ribeiras altas chegam
Que com morte de magno são famosas
Vão a mênfis e às terras, que se regam
Das enchentes nilóticas undosas
Sobem à etiópia, sobre egito
Que de cristo lá guarda o santo rito
63
'passam também as ondas eritreias
Que o povo de israel sem nau passou
Ficam-lhe atrás as serras nabateias
Que o filho de ismael co'o nome ornou
As costas odoríferas sabeias
Que a mãe do belo adónis tanto honrou
Cercam, com toda a arábia descoberta
Feliz, deixando a pétrea e a deserta
64
'entram no estreito pérsico, onde dura
Da confusa babel inda a memória
Ali co'o tigre o eufrates se mistura
Que as fontes onde nascem tem por glória
Dali vão em demanda da água pura
Que causa inda será de larga história
Do indo, pelas ondas do oceano
Onde não se atreveu passar trajano
65
'viram gentes incógnitas e estranhas
Da índia, da carmânia e gedrosia
Vendo vários costumes, várias manhas
Que cada região produze e cria
Mas de vias tão ásperas, tamanhas
Tornar-se facilmente não podia
Lá morreram enfim, e lá ficaram
Que à desejada pátria não tornaram
66
'parece que guardava o claro céu
A manuel, e seus merecimentos
Esta empresa tão árdua, que o moveu
A subidos e ilustres movimentos
Manuel, que a joane sucedeu
No reino e nos altivos pensamentos
Logo, corno tornou do reino o cargo
Tomou mais a conquista do mar largo
67
'o qual, como do nobre pensamento
Daquela obrigação, que lhe ficara
De seus antepassados, (cujo intento
Foi sempre acrescentar a terra cara)
Não deixasse de ser um só momento
Conquistado: no tempo que a luz clara
Foge, e as estrelas nítidas, que saem
A repouso convidam quando caem
68
'estando já deitado no áureo leito
Onde imaginações mais certas são?
Revolvendo contino no conceito
Seu ofício e sangue a obrigação
Os olhos lhe ocupou o sono aceito
Sem lhe desocupar o coração
Porque, tanto que lasso se adormece
Morfeu em várias formas lhe aparece
69
'aqui se lhe apresenta que subia
Tão alto, que tocava a prima esfera
Donde diante vários mundos via
Nações de muita gente estranha e fera
E lá bem junto donde nasce o dia
Depois que os olhos longos estendera
Viu de antigos, longínquos e altos montes
Nascerem duas claras e altas fontes
70
'aves agrestes, feras e alimárias
Pelo monte selvático habitavam
Mil árvores silvestres e ervas várias
O passo e o tracto às gentes atalhavam
Estas duras montanhas, adversárias
De mais conversação, por si mostravam
Que, desque adão pecou aos nossos anos
Não as romperam nunca pés humanos
71
'das águas se lhe antolha que saíam
Para ele os largos passos inclinando
Dois homens, que mui velhos pareciam
De aspecto, inda que agreste, venerando
Das pontas dos cabelos lhe caíam
Gotas, que o corpo vão banhando
A cor da pele baça e denegrida
A barba hirsuta, intonsa, mas comprida
72
'dambos de dois a fronte coroada
Ramos não conhecidos e ervas tinha
Um deles a presença traz cansada
Como quem de mais longe ali caminha
E assim a água, com ímpeto alterada
Parecia que doutra parte vinha
Bem como alfeu de arcádia em siracusa
Vai buscar os abraços de aretusa
73
'este, que era o mais grave na pessoa
Destarte para o rei de longe brada
—'ó tu, a cujos reinos e coroa
Grande parte do mundo está guardada
Nós outros, cuja fama tanto voa
Cuja cerviz bem nunca foi domada
Te avisamos que é tempo que já mandes
A receber de nós tributos grandes
74
—'eu sou o ilustre ganges, que na terra
Celeste tenho o berço verdadeiro
Estoutro é o indo rei que, nesta serra
Que vês, seu nascimento tem primeiro
Custar-te-emos contudo dura guerra
Mas insistindo tu, por derradeiro
Com não vistas vitórias, sem receio
A quantas gentes vês, porás o freio.'—
75
'não disse mais o rio ilustre e santo
Mas ambos desaparecem num momento
Acorda emanuel c'um novo espanto
E grande alteração de pensamento
Estendeu nisto febo o claro manto
Pelo escuro hemisfério sonolento
Veio a manhã no céu pintando as cores
De pudibunda rosa e roxas flores
76
'chama o rei os senhores a conselho
E propõe-lhe as figuras da visão
As palavras lhe diz do santo velho
Que a todos foram grande admiração
Determinam o náutico aparelho
Para que com sublime coração
Vá a gente que mandar cortando os mares
A buscar novos climas, novos ares
77
'eu, que bem mal cuidava que em efeito
Se pusesse o que o peito me pedia
Que sempre grandes cousas deste jeito
Pressago o coração me prometia
Não sei por que razão, por que respeito
Ou por que bom sinal que em mi se via
Me põe o ínclito rei nas mãos a chave
Deste cometimento grande e grave
78
De com rogo o palavras amorosas
Que é um mando nos reis, que a mais obriga
Me disse:—'as cousas árduas e lustrosas
Se alcançam com trabalho e com fadiga
Faz as pessoas altas e famosas
A vida que se perde e que periga
Que, quando ao medo infame não se rende
Então, se menos dura, mais se estende
79
—'eu vos tenho entre todos escolhido
Para uma empresa, qual a vós se deve
Trabalho ilustre, duro e esclarecido
O que eu sei que por mi vos será leve.'—
Não sofri mais, mas logo:—'ó rei subido
Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve
É tão pouco por vós, que mais me pena
Ser esta vida cousa tão pequena
80
—'imaginai tamanhas aventuras
Quais euristeu a alcides inventava
O leão cleoneu, harpias duras
O porco de erimanto, a hidra brava
Descer enfim às sombras vãs e escuras
Onde os campos de dite a estige lava
Porque a maior perigo, a mor afronta
Por vós, ó rei, o espírito e a carne é pronta.'
81
'com mercês sumptuosas me agradece
E com razões me louva esta vontade
Que a virtude louvada vive e cresce
E o louvor altos casos persuade
A acompanhar-me logo se oferece
Obrigado d'amor e d'amizade
Não menos cobiçoso de honra e fama
O caro meu irmão paulo da gama
82
'mais se me ajunta nicolau coelho
De trabalhos mui grande sofredor
Ambos são de valia e de conselho
De experiência em armas e furor
Já de manceba gente me aparelho
Em que cresce o desejo do valor
Todos de grande esforço; e assim parece
Quem a tamanhas cousas se oferece
83
'foram de emanuel remunerados
Porque com mais amor se apercebessem
E com palavras altas animados
Para quantos trabalhos sucedessem
Assim foram os mínias ajuntados
Para que o véu dourado combatessem
Na fatídica nau, que ousou primeira
Tentar o mar euxínio, aventureira
84
De já no porto da ínclita ulisseia
C'um alvoroço nobre, e é um desejo
(onde o licor mistura e branca areia
Co'o salgado neptuno o doce tejo)
As naus prestes estão; e não refreia
Temor nenhum o juvenil despejo
Porque a gente marítima e a de marte
Estão para seguir-me a toda parte
85
'pelas praias vestidos os soldados
De várias cores vêm e várias artes
E não menos de esforço aparelhados
Para buscar do inundo novas partes
Nas fortes naus os ventos sossegados
Ondeam os aéreos estandartes
Elas prometem, vendo os mares largos
De ser no olimpo estrelas como a de argos
86
'depois de aparelhados desta sorte
De quanto tal viagem pede e manda
Aparelhamos a alma para a morte
Que sempre aos nautas ante os olhos anda
Para o sumo poder que a etérea corte
Sustenta só coa vista veneranda
Imploramos favor que nos guiasse
E que nossos começos aspirasse
87
'partimo-nos assim do santo templo
Que nas praias do mar está assentado
Que o nome tem da terra, para exemplo
Donde deus foi em carne ao mundo dado
Certifico-te, ó rei, que se contemplo
Como fui destas praias apartado
Cheio dentro de dúvida e receio
Que apenas nos meus olhos ponho o freio
88
'a gente da cidade aquele dia
(uns por amigos, outros por parentes
Outros por ver somente) concorria
Saudosos na vista e descontentes
E nós coa virtuosa companhia
De mil religiosos diligentes
Em procissão solene a deus orando
Para os batéis viemos caminhando
89
'em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam
As mulheres c'um choro piedoso
Os homens com suspiros que arrancavam
Mães, esposas, irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperarão, e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo
90
'qual vai dizendo:—'ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha
Que em choro acabará, penoso e amaro
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro
A fazer o funéreo enterramento
Onde sejas de peixes mantimento!'—
91
'qual em cabelo:—'ó doce e amado esposo
Sem quem não quis amor que viver possa
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha, e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento?'—
92
'nestas e outras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade
Os velhos e os meninos os seguiam
Em quem menos esforço põe a idade
Os montes de mais perto respondiam
Quase movidos de alta piedade
A branca areia as lágrimas banhavam
Que em multidão com elas se igualavam
93
'nós outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado
Que, posto que é de amor usança boa
A quem se aparta, ou fica, mais magoa
94
'mas um velho d'aspeito venerando
Que ficava nas praias, entre a gente
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente
A voz pesada um pouco alevantando
Que nós no mar ouvimos claramente
C'um saber só de experiências feito
Tais palavras tirou do experto peito
95
—'ó glória de mandar! ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas
Que crueldades neles experimentas!
96
—'dura inquietação d'alma e da vida
Fonte de desamparos e adultérios
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios
Chamam-te ilustre, chamam-te subida
Sendo dina de infames vitupérios
Chamam-te fama e glória soberana
Nomes com quem se o povo néscio engana!
97
—'a que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
98
—'mas ó tu, geração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência
Idade d'ouro, tanto te privou
Que na de ferro e d'armas te deitou
99
—'já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia
Já que prezas em tanta quantidades
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá
100
—'não tens junto contigo o ismaelita
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do arábio a lei maldita
Se tu pela de cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado
Se queres por vitórias ser louvado?
101
—'deixas criar às portas o inimigo
Por ires buscar outro de tão longe
Por quem se despovoe o reino antigo
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge
Chamando-te senhor, com larga cópia
Da índia, pérsia, arábia e de etiópia?
102
—'ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho
Dino da eterna pena do profundo
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo
Nem cítara sonora, ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória
Mas contigo se acabe o nome e glória
103
—'trouxe o filho de jápeto do céu
O fogo que ajuntou ao peito humano
Fogo que o mundo em armas acendeu
Em mortes, em desonras
Quanto melhor nos fora, prometeu
E quanto para o mundo menos dano
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!
104
—'não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquiteto co'o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio
Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio
Deixa intentado a humana geração
Mísera sorte, estranha condição!'—